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Textos malditos ( 3)

A figueira cresceu
com o ressentimento,
todos os dias o viu passar,
vil na torna,
até o cão se ria.

Invernos e calores,
medrou a figueira,
ele sempre azougado
pisando terra dela
como se a serventia
lhe obedecesse.

Até que um dia
a navalha deslizou
e do figo
ganhou rumo fiel;
à passagem do ratoneiro
foi-se-lhe às goelas,
sem aviso nem edital.

Perguntou-me o doutor juiz
se eu não tinha vergonha
de pagar em moeda de costela
tão escassa ofensa.

Respondi que sim,
senhor doutor
eu tinha,
mas a navalha
é filha da figueira.



(Bento de Sousa Soares, Contos da terra morta, Ed Centúria, Lisboa, 1981)


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