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Showing posts from August, 2018

Textos malditos ( 4)

Era uma puta versátil, trabalhava em todo  o lado: bancos, ministérios, igrejas, quartéis, partidos, quermesses. Não cobrava no acto, mas depois  enviava uma notinha: Ao cuidado  de V.Ex.ª, disponha sempre, esqueça nunca . (Alberto  Ganacho, Ninguém nasce calçado , Ed Perlimpimpim, Porto, 1976)

Os valores de Helena Garrido

Podemos estar a assistir à degradação dos valores . Como sabemos, estavam preservadíssimos na tal Lisboa que HG imagina. Por exemplo, na do Hintze Ribeiro, o homem que não ria , que, recordava  o Correio Nacional em Novembro de 1918, antes de se  demitir nomeou dois cunhados, um sobrinho e um irmão para os Impostos e Alfândegas. Acabou coberto de condecorações. Damos um saltinho temporal  e umas voltas de submarinos  e submergimos encantados com histórias de probidade e serviço público do mais alto coturno . Quando acabamos de ler  um texto que termina concluindo da possível degradação de valores, sabemos ao que vamos. Dos homens de ouro aos  de ferro, a rampa está sempre a ser levantada. O que HG dá  voz, no seu texto, é à impotência  e isso é aceitável. É evidente que, com PCP e Bloco no banco da equipa governamental, o protesto de rua é finito.Tudo o que é mau veio do Passos ou, em alternativa, vem da UE. Em troca sobrevivem: a política é isto, tal como foi quando Passos Co

Da menor insanitas, a saudade

É de bom tom elogiar a originalidade portuguesa, mas por acaso faz-me mais sentido o anglo-saxónico miss you ou home sick . Faltar-nos uma coisa ou estarmos doentes pela falta dela é bem apropriado. Seja como for, a emoção em causa é  reconhecida por todos. Tecnicamente, a saudade parece  irracional. O 'Oneill explicava:   Chorar encostada a uma saudade  bem maior do que eu, Que não fosse esta tristeza Absurda de cada dia .  Curioso é que é das emoções que vejo mais vezes racionalizadas. Aliás,  há crimes  em nome do ciúme, do amor  e do ódio, raramente  por causa da saudade.  Habituamo-nos à ausência do outro, temporária ou definitiva (  também, mas não só, sob  a forma do luto).  A racionalidade  é assinalada através do reconhecimento da impotência, o que, como sabemos, é sintoma de saúde mental evitando identificações a Napoleão. A tristeza absurda  de cada dia é estribada numa  emoção suportável e também  é muito racional e saudável. Assumindo o absu

Not that people infantilize their pets or anything...

"Not that people infantilize their pets or anything, but, well ... just in case you need to diaper your chicken, you can do so with a stylish selection of diapers from Pampered Poultry. The company promises that the diapers, $12.50 each, “fit comfortably and allow you to enjoy your birds in the house or car without worry! ”. Li na Sábado uma pequena nota sobre uma mulher  que comercializa as tais fraldas mas parece que agora  também  saias para galinhas. Quando há vinte anos comecei a ver cães  vestidos também ri. Agora  vão ao psicólogo , têm rações-patês mais caras que o fiambre das escolas, a guarda   conjunta é discutida nos divórcios, têm festivais de Verão etc. A frase mais comum nas redes sociais é eles perdoam tudo, nunca se zangam , estão lá sempre para nós, são fidelíssimos . Não sorrio nem rio. Os humanos que elegem estes pressupostos como o ápex  relacional dão-me calafrios. Se, por um lado, há apenas os neuróticos e frustradas emocionais que encontram nas la

Textos malditos ( 3)

A figueira cresceu com o ressentimento, todos os dias o viu passar, vil na torna, até o cão se ria. Invernos e calores, medrou a figueira, ele sempre azougado pisando terra dela como se a serventia lhe obedecesse. Até que um dia a navalha deslizou e do figo ganhou rumo fiel; à passagem do ratoneiro foi-se-lhe às goelas, sem aviso nem edital. Perguntou-me o doutor juiz se eu não tinha vergonha de pagar em moeda de costela tão escassa ofensa. Respondi que sim, senhor doutor eu tinha, mas a navalha é filha da figueira. (Bento de Sousa Soares, Contos da terra morta , Ed Centúria, Lisboa, 1981)

Óculos

Há uma cruzada de Sofia Rodrigues, do Público, contra a direcção do PSD , diz o PSD. Se a força de  um político se mede pelos adversários que  cria, e se Sofia Rodrigues  é o adversário,  Rui Rio tem hoje o estatuto  de um vizinho numa disputa de serventias. Pode ser compreensível este desconforto com jornalistas  não atrelados dadas as recentes companhias tão amigas  da imprensa  livre , mas é o que  há. Por outro lado, existe  um tom de evolução na continuidade. Luis Filipe Meneses esquecia  a idade Média e optava por outras épocas, mas também barganhava  na luta de condomínios: os jornalistas eram soviéticos . Talvez por andar azougado nestas cizânias, o PSD tem  generosamente descurado o trabalho de casa. A sessão legislativa encerrou e o tal documento da reforma judiciária ficou no tinteiro. Num alarde de galhardia, tem deixado a oposição ao governo entregue ao Bloco e ao PCP. Não percebo muito bem. Como dizia o certeiro Fialho, às vezes há  cretinos cegos cujos óculos a

Lombroso e os delinquentes dos diagnósticos

O original em italiano  é mais bonito, mas para quem tem dificuldades o JSTOR disponibiliza, sem custos,  a versão em inglês . Não  é tanto a patofisionomia que me interessa, mas uma espécie de genética ( influência hereditária ) que Lombroso utiliza. Um nasceu num castelo onde houve roubos, outro tinha uma mãe lunática, outro ainda teve um pai que sofreu uma concussão cerebral. Do ponto de vista psicológico e psiquiátrico, tratava-se, como sabemos,  de justificar a acção política com uma raíz clínica. Muitos sorriem  ao ler Lombroso, outros talvez não . Uma boa nota:  AZIM SHARIFF: For people high in anti-Muslim prejudice, people are very unlikely to perceive the Muslim shooter to be mentally ill. But people are completely comfortable in saying that the Christian shooter was mentally ill .  Isto é mato espinhoso, sei muito bem, por isso o rodapé vai com outra cor: o diagnóstico do terrorista implica a autoridade sobre a sua  estrutura mental. Quer-se dizer, conheciment

Melanomas

Com este calor, o PSD está ao fresco. Rui Rio faz muito bem . Como dizia Pinheiro Chagas sobre Correia da Silva : metam-no numa gaiola a debitar ideias, mas não  o deixem sair porque dá cabo delas . As críticas a Rio são injustas. Se olharmos para a massa política  do seu  núcleo atómico, podia ser muito pior. Talvez por isso, da extrema esquerda  ( Pacheco Pereira) à esquerda  ( Daniel Oliveira), o sinal seja  permanente: os críticos do patron de Elina Fraga são passistas ressabiados. Todos devem poder criticar, mas nunca criticando. Temos também  a nova aventura de Santana  Lopes. Vivi uma dele na Figueira da Foz. Tinha lá casa, nunca mais lá pus os pés. No entretanto já começou a festa tupperware . Do pré-manifesto fixei a liberalização da segurança social. É mais fácil Santana entrar num convento do que mexer nesse assunto. Se nos sentarmos à sombra a recordar as reformas pós-74, só encontraremos as que foram impostas de fora ( CEE e troika). O nosso reaccionarismo é límpi

A carta mágica

Apaixonou-se pelo carteiro que lhe levou a sentença do divórcio . Até aqui nada de  outro mundo: podia ter sido pelo polícia que a multou ou  pelo nadador salva-vidas que  a salvou.  Os vínculos têm tanto de pretexto como de necessidade. Mais sumarenta foi a resolução do problema: como voltar a vê-lo ? Pois claro, a mulher começou a enviar cartas a si própria. Temos aqui, portanto, um mergulho nas actividades  dos sacerdotes  avésticos orientais ou, já que  a mulher parece ocidental, nas dos medos ( magos). A crença na magia pode ter reforçado  a outra crença, a da que aquele homem era o homem. Se o carteiro tivesse  mudado de zona, o que teria feito a mulher? Gosto de pensar que talvez se tivesse apaixonado pelo substituto. Os desencontros também têm muito potencial amoroso. Nada sabendo da senhora ( nem do senhor),  é óbvio que o registo deste episódio se deve , uma vez mais, ao efeito que provocou no jornalista e nos seus leitores. Adoramos pensar que dois seres destina

Textos malditos ( 2)

Obrigado, claro que vamos, eu , o João e os miúdos, é o dia mais importante da vida de um amigo; é um bocado em cima da hora, mas amanhã lá estaremos a dar-te um beijnho enquanto  não fecham o  caixão. Espero que vá toda  a gente, quero pôr  a conversa em dia e estrear um trapinho que me fica a matar Fizeste muito bem, funeral só há um e mais nenhum; pelo menos o teu. (Rita K., Sombras sólidas , Ed Bairro das memórias, 1983, Lisboa)

Percepção

O estacionamento do Supercor está quase sempre vazio quando chego ( um ou duas viaturas de funcionários). Quando acabo as compras tem no máximo mais quatro ou cinco carros, dispersos como moitas. Ora bem, em três ocasiões tentei entrar num carro que não era  o meu ( mas igualzinho) . Primeira explicação lógica: cabeça no ar. Sou, sem dúvida, mas não serve nesta situação específica: nunca me aconteceu. Depois, naturalização: compreende-se, dois carros iguais  lado a lado. Também não serve: à uma, porque, como qualquer pessoa, acciono à distância o comando ( barulhinho, piscas etc) e nem sempre os carros estavam juntinhos; depois, porque existe uma coisa essencial na atribuição  causal: a consistência temporal . Explico: depois de fazer figura de urso uma vez, faço uma segunda e ainda uma terceira ( e esta foi espectatular, já conto) ? Não. Quero chegar a isto: existem comportamentos inexplicáveis. A psicologia, ok, uma  parte dela,  especializou-se na taxonomia do que Barthes c

Lone abiõn

Officials don't believe Russell had a pilot's license, and they don't know how he knew to fly the plane . Ele trabalhava com aviões. Rebocava-os. Talvez os lavasse à mangueirada, lhes passasse a mão nas asas, até, quiçá, falasse com eles.  A primeira tentação é a da grandeur:  um avião, media, redes sociais. Depois vacilamos um pedacito: um discurso amável, sem rancor contra ninguém, o desejo calmo de despenhar a máquina. Tretas. Não sabemos nada dele. Então por que o trago aqui? Pela reacção que nos provoca, a nós, pessoal de terra, um suicídio tão original mas ao mesmo tempo com elementos  tão comuns.  Não quis arrastar ninguém , ao contrário destes , não  acusou ninguém, não mudou de ideias numa hora de conversa com o pessoal de terra. Suavidade sim, mas também aquilo que existe em todos os suicídios: um incrível momento de solidão. Não existe nada, mesmo nada, mais solitário do que esse  último instante . Tanto assim que nada sabemos dele.

Krisis, a doença em curso

"Há uma tarefa das pessoas que não se revêem no PS nem na extrema-esquerda de reconstrução da direita em Portugal, que está por fazer". Como lhe prometi ( é para o lado que ele dorme melhor, mas um Lannister cumpre sempre as suas promessas), um comentário à entrevista do Miguel Morgado. Sá Carneiro, como todos os que estão livres de processos demenciais  recordam, era um fascista. De Cavaco,  Portas e o seu régulo Monteiro disseram tudo menos que representava  a direita portuguesa. Passos foi o único a quem encarapuçaram uma espécie de direita,  a neoliberal. Os restantes foram  rótulos de boticário.  Ora,  Passos,  esse mané-jacá fugido de  Rilhafoles, resolveu, estando o país belissimamente bem, chamar a  a troika e cortar salários; conclui-se com leveza que  a direita nunca esteve senão em crise, literalmente o momento decisivo de uma doença em curso .  Sobre Rio e os encontros imediatos de terceiro grau com o PS de Costa, o Miguel não diz, talvez para esconjurar

Mad Max

A loucura individual  recebe muito menor compreensão do que a  colectiva: Ah...mas o meu amigo...está  a escapar-lhe uma quantidade de  factores políticos, sociais, culturais..enfim...   Existem alguns topoi escorregadios, como o caso das seitas, apresentados como de loucura  colectiva. Pois, mas vai-se  a ver e existe sempre  um chefe maléfico, hipnotizador  ou adivinhador da chave do euromilhões. E depois... aqueles seguidores...óbvio que tinham uma  aduela a menos...   O foro de Melgaço previa a multa de  de trezentos soldos  para o vizinho de outra  comunidade que prendesse  um dos seus, mas restringia  a cinco soldos  a compensação a pagar  pelo homem de Melgaço que prendesse alguém de outra terra. Mattoso recupera o documento ( num livro fabuloso, mas isso não é para agora) do século XII. Se aplicássemos uma  grelha individual diríamos que os de Melgaço eram dados à vesânia, não diríamos? A restrição da loucura  ao indivíduo, isentando a comunidade de igual peca

Textos malditos ( 1)

Faço questão de comer a Angelina de frente para a  fotografia do nosso casamento; sempre  me inspiraste, eras  tão linda e já tão  rica. Não te preocupes, tenho gasto  com parcimónia e como gostarias: lembrando-me de como é bom ter ficado com uma parte de ti. Pena é estar estar distribuída por tantos  balcões, grande vaca. (Mário Denilo, Delitos comuns, Ed Pluma Verde,  Porto, 1977 )

O martírio de uma mulher

Amor louco: eu contigo e tu com outro, já diziam os antigos. Imaginemos  uma coisa parecida hoje. Suponhamos que uma herdeira  da cortiça ou dos hipermercados, de 48 anos,  desaparecia e era encontrada meses depois a viver com um segurança  vinte anos mais novo. Até aqui tudo igual. Mesmo no nosso tempo seria possivel o desejo de recato e privacidade, bastando desligar o telemóvel e não frequentar as redes sociais. A comoção na família endinheirada e o interesse mediático também não seria muito diferente. Outra conversa seria o estatuto de Maria Adelaide hoje: presença em todos os telejornais e capas de revistas, símbolo  da pureza do amor, emblema da nova condição feminina etc. A família endinheirada e famosa ficaria com o labéu de reaccionária-marialva e não lhe restaria mais do que deixar de prestar  declarações. A diferença  mais importante, no entanto, seria outra. À época, os pincipais especialistas - Sobral Cid, Egas Moniz, Júlio de Matos - garantiram um epsisódio de l