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Do prazer

É notável como uma coisa maravilhosa pode ser tão desprezada. Acorda-se vivo, os os nossos estão bem,   o café está feito. Se digo isto na clínica,  olham-me com um sorriso de compreensão pelo tolinho que os devia estar a tratar e afinal não acende as luzes nos andares todos. Por vezes rematam o sr dr não sabe o que a vida pode trazer . Nessas alturas sorrio eu:  pois é, pois é...

Do optimismo não sei nada,  salvo antes de cada jogo do Glorioso, mas do desperdício da vida , ao fim destes anos todos, sei alguma coisa. A insanidade é um agente  duplo: as pessoas  acham tão vulgares tantas coisas boas que têm, que não lhes passa pela cabeça que possam ser traídas na próxima esquina. O contra-argumento conheço-o de gingeira: então devíamos andar tolinhos de  contentes porque os miúdos estão bem, o carro não foi parar debaixo de um camião,  o ordenado foi depositado etc? 


Não se trata de andar contente ou triste. Ele há malta que anda contente em jornadas vingativas e outra que anda triste porque  que pesa  cem gramas a mais. Trata-se de ter a inteligência de compreender que o que temos de bom  em cada instante é um prazer fragilíssimo, sobretudo, de aceitar que quase nada nos pertence:  o aluguer é renovado todo os  dias.



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After eight

Depois da excitação sasonal, o assunto da morte de mulheres vai voltar ao remanso. Quando publiquei o livro pude estender o lençol , mas o registo pseudo-literário evitou algumas notas. Agora posso pôr a colcha. Na minha actividade profissional encontro amiúde o início do processo. Mais: encontro até processos que não chegam a ser. Duas correntes: a necessidade assumida que muitas mulheres  têm hoje de uma vida amorosa plena e a estupidificação dos maridos/companheiros/namorados diante dessa necessidade. Se a esmagadora maioria da violência sobre  elas  tem a ver com ciúme  e posse, temos de examinar a evolução das relações amorosas. O João foca-se aqui na saudade dos velhos mecanismos da solidariedade mecânica, como Durkheim a definiu, mas eles morreram bem antes do surto actual. Falando simples: se elas amochassem como amochavam há 40 anos ( não é preciso ir à sociologia do século XIX), muitos destes crimes não ocorriam hoje. A posse, a ilusão de uma garantia sobre o co

Farsas

Os três filmes sobre a luta contra  o comunismo na Polónia são polacos. Ou seja, o assunto, um dos mais importantes da vida europeia do final do século  XX, nunca interessou às grandes companhias  de Hollywood nem aos produtores, intelectuais e artistas franceses ou ingleses.    Há coerência. Também são raríssimas as incursões da  Europa ilustrada e unida contra o populismo, o fascismo e as fakes news, no quotidiano  de metade dos (actuais) europeus  sob a pata das polícias secretas, da interdição de manifestações, da proibição de livros e do encarceramento por delito de opinião. É evidente que eleger o assunto como tema de atenção significaria mostar como funcionou, na prática, o comunismo. Nos detalhes da repressão e da pobreza e não no palavreado do progresso e  da liberdade. Também havia episódios burlescos. Na Polónia as pessoas festejam o aniversário e o dia  do seu santo.  Quando era a vez de Walesa, uma espectacular pantomina desenrolava-se  diante de sua casa. Uma a u