Skip to main content

Sexo & aplicações

Aplicações de encontros. É esse o nome do Tinder, do Happn e de muitas outras. É um nome razoável: simples, directo ao assunto. Nos últimos três-quatro anos coleccionei dezenas de casos de pessoas que mudaram a sua vida sexual  por causa destas aplicações. Já dá para fazer uma pequena e modesta  análise: tenho as notas de 18 histórias. Todas mulheres, todas hetero ( outros géneros eram em número residual), todas abaixo dos 49 ( lá se vai esta lengalenga)  e todos casos que conheço bem: estão ou estiveram em terapia ou em aconselhamento pontual ( eliminei todos as consultas sem seguimento).
Um dos primeiros que me chamou a atenção foi o de uma mulher  de  31 anos, muito agraciada pela Natureza, inteligente  e com sentido de humor. Para que raio precisava ela de uma aplicação de encontros? Quando a conheci melhor  compreendi. Um par de relações gatadas, nenhuma vontade de se comprometer -  bastante de voltar a ter sexo -,vida profissional preenchida. À noite, sozinha,  tentava encontra alguém minimamente interessante e depos logo se veria.

1) Estas aplicações decorrem da natural presença  na nossa vida das novas   ferramentas de socialização electrónica. Não foi por acaso  que os criadores do Tinder  atarracharam a aplicação ao Facebook: pôr gente  real em contacto, evitar os perfis anónimos (não totalmente , mas enfim), o  Instagram já está acoplado ( o que acontece também no Happn) . Fotos, perfis sociais, conversas descontraídas, ou seja, o antigo café de bairro, ou discoteca do século passado, em versão tecno. Com algumas diferenças.

2) E a  principal é que todas as mulheres de disseram, de forma mais ou menos explícita, que o envolvimento sexual era o objectivo. Não tinham ilusões  sobre o que eles queriam ( confirmado pelo excesso de lero-lero deles) . E, como sabemos, sem ilusões as coisas correm melhor. Ainda assim, uma, que resistiu algum tempo às aplicações de encontros,  dizia-me que tinha alguma vergonha de encontrar pessoas conhecidas ( no Tinder, porque o Happn é para isso mesmo): que pensem que estou desesperada. Trabalhou-se  a coisa e lá acabou por aderir . Divertiu-se imenso, mas continua sozinha.

3)Algumas das mulheres ( cinco ) eram casadas/ juntas ( as mais velhas) . Fartaram-se de fantasiar com antigos colegas de faculdade, clientes ou vizinhos e quiseram mais. Lá criaram perfis falsos no FB, mas, por causa das fotos, optaram por candidatos de outras paragens ( sempre um risco mesmo assim). Este grupo mereceu-me particular atenção porque a mobilidade era menor do que nas mais novas e porque a solidão era de outro género, mas, sobretudo, porque assumiram fisicamente uma necessidade em vez de a camuflar ( sublimar na lalangue analítica). Três delas chegaram a vias de facto e concluiram que foi divertido mas não extraordinário ( e trabalhoso) e regressaram à modorra habitual.

4) Desdramatizando: do  que constatei, estas mulheres, de uma maneira ou de outra, conseguiram escapar à solidão ( sexual, narcísica, relacional) apenas para descobrir depressa que  essa escapatória é breve.
A tecnologia acelera  e facilita a satisfação  do desejo; a  frustração, essa é do tempo da pedra lascada.

Comments

Popular posts from this blog

After eight

Depois da excitação sasonal, o assunto da morte de mulheres vai voltar ao remanso. Quando publiquei o livro pude estender o lençol , mas o registo pseudo-literário evitou algumas notas. Agora posso pôr a colcha. Na minha actividade profissional encontro amiúde o início do processo. Mais: encontro até processos que não chegam a ser. Duas correntes: a necessidade assumida que muitas mulheres  têm hoje de uma vida amorosa plena e a estupidificação dos maridos/companheiros/namorados diante dessa necessidade. Se a esmagadora maioria da violência sobre  elas  tem a ver com ciúme  e posse, temos de examinar a evolução das relações amorosas. O João foca-se aqui na saudade dos velhos mecanismos da solidariedade mecânica, como Durkheim a definiu, mas eles morreram bem antes do surto actual. Falando simples: se elas amochassem como amochavam há 40 anos ( não é preciso ir à sociologia do século XIX), muitos destes crimes não ocorriam hoje. A posse, a ilusão de uma ...

Farsas

Os três filmes sobre a luta contra  o comunismo na Polónia são polacos. Ou seja, o assunto, um dos mais importantes da vida europeia do final do século  XX, nunca interessou às grandes companhias  de Hollywood nem aos produtores, intelectuais e artistas franceses ou ingleses.    Há coerência. Também são raríssimas as incursões da  Europa ilustrada e unida contra o populismo, o fascismo e as fakes news, no quotidiano  de metade dos (actuais) europeus  sob a pata das polícias secretas, da interdição de manifestações, da proibição de livros e do encarceramento por delito de opinião. É evidente que eleger o assunto como tema de atenção significaria mostar como funcionou, na prática, o comunismo. Nos detalhes da repressão e da pobreza e não no palavreado do progresso e  da liberdade. Também havia episódios burlescos. Na Polónia as pessoas festejam o aniversário e o dia  do seu santo.  Quando era a vez de Walesa, uma especta...

Morte, tempo e memória ( 4)

As memórias são sempre más: se são boas, são más porque são de um tempo  irrepetível; se são más, atormentam-nos. No outro dia estava a pensar naqueles dois golos do Nuno Gomes nas Antas  ( era Koeman): caramba, são boas? Não, não são. Fazem amargar o presente. Um psicanalista chanfrado, Ferenczi, num texto  com um título  ainda mais chanfrado ( The psychic effect of sunbath , 1914 )  discorre sobre a neurose de domingo . A ideia é que todas as memórias depressivas   ligadas a uma data ( dia, hora, ano)  específica  são um gatilho que faz regressar um estado de impulsos reprimidos ( uma constante psicanalítica). Ou seja, deprimimos porque nos lembramos da repressão. É possivel, pese a chanfradice, que o homem tenha uma certa razão. Quando recordamos certos episódios, recordamos também a impotência: apeteceu-me sei lá quê, só queria desaparecer etc, tive vontade de lhe  ir aos fagotes  etc. É curioso que talvez aconteça um...