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Morte, tempo e memória : 3 ( apêndice ao Dicionário da derrota)

O único animal que tem a percepção do tempo é também o único que sabe que vai morrer. Óptimo pretexto para falarmos de aniversários.

Demoro-me muito a escutar os velhos que me falam  dos seus dias de anos. A regra é a tristeza. Sabem que falta pouco. De vez em quando aparecem umas ( sempre mulheres)  que mostram alegria e satisfação. Essas ouço-as imóvel como um perdigueiro a apontar perdiz. Dizem-me que adoram viver e, apesar da idade, pior seria ir fazê-los ( os anos) à cova. E celebram.

Mais sumarentos são os aniversários do plantel  da meia-idade. Lembro-me de uma vez  estar com o  Carlos Amaral Dias à conversa no dia seguinte ao seu sexagésimo aniversário. Não  ferindo a privacidade, digamos que ele estava desanimado. Recuando um bocadinho: e  os cinquentões ( a minha categoria) que juntam amigos  para uma grande farra? Bem, pelo menos nesse dia, com o álcool, não tomam o antidepressivo.

Se gostas de viver, gostas de fazer anos. Não pelo aniversário em si, mas pela lógica da sobrevivência. Pode-se argumentar: mas então sobreviver é motivo de festarola? Claro que não. Prefiro a sensação do gajo na trincheira que vê o dia raiar: uma comemoração discreta, com um golo do cantil e uma lata de ração de combate.

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