Skip to main content

Morte, tempo e memória ( 4)

As memórias são sempre más: se são boas, são más porque são de um tempo  irrepetível; se são más, atormentam-nos.
No outro dia estava a pensar naqueles dois golos do Nuno Gomes nas Antas  ( era Koeman): caramba, são boas? Não, não são. Fazem amargar o presente.

Um psicanalista chanfrado, Ferenczi, num texto  com um título  ainda mais chanfrado ( The psychic effect of sunbath, 1914 )  discorre sobre a neurose de domingo . A ideia é que todas as memórias depressivas   ligadas a uma data ( dia, hora, ano)  específica  são um gatilho que faz regressar um estado de impulsos reprimidos ( uma constante psicanalítica). Ou seja, deprimimos porque nos lembramos da repressão.

É possivel, pese a chanfradice, que o homem tenha uma certa razão. Quando recordamos certos episódios, recordamos também a impotência: apeteceu-me sei lá quê, só queria desaparecer etc, tive vontade de lhe  ir aos fagotes  etc. É curioso que talvez aconteça uma ligeira  variação com as boas memórias: ficamos deprimidos porque somos impotentes para regressar  a esse tempo e repetir a experiência. Pior ainda se não a aproveitámos como devia ser: fica para outra altura...

Comments

Popular posts from this blog

After eight

Depois da excitação sasonal, o assunto da morte de mulheres vai voltar ao remanso. Quando publiquei o livro pude estender o lençol , mas o registo pseudo-literário evitou algumas notas. Agora posso pôr a colcha. Na minha actividade profissional encontro amiúde o início do processo. Mais: encontro até processos que não chegam a ser. Duas correntes: a necessidade assumida que muitas mulheres  têm hoje de uma vida amorosa plena e a estupidificação dos maridos/companheiros/namorados diante dessa necessidade. Se a esmagadora maioria da violência sobre  elas  tem a ver com ciúme  e posse, temos de examinar a evolução das relações amorosas. O João foca-se aqui na saudade dos velhos mecanismos da solidariedade mecânica, como Durkheim a definiu, mas eles morreram bem antes do surto actual. Falando simples: se elas amochassem como amochavam há 40 anos ( não é preciso ir à sociologia do século XIX), muitos destes crimes não ocorriam hoje. A posse, a ilusão de uma garantia sobre o co

After eight ( 2)

Operárias, donas de pequenos aviários, empregadas de supermercados. Quando comecei, no século passado, era raríssimo ter com elas conversas sobre sexo e aparecerem-me  produzidas no gabinete, orgulhosas das unhas de gel ou das tatuagens. Eles, por seu turno, aparecem-me da mesma maneira. A pegunta dos cem milhões ( pelo menos a que eu faço a mim próprio)  é: por que motivo não evoluíram eles também ? Encontro os mesmos pressupostos de posse e mando que encontrava no século passado. Isto significa o total desinvestimento na relação amorosa. Um exemplo:  tenho mulheres casadas /juntas que não se lembram  da última vez em que foram jantar a dois ou numa escapadinha de fim de semana. Quando os confronto, depois das desculpas dos gastos ( muitas vezes espúrias porque gastam eles mais  nos seus hóbis), indagando se não faria bem à relação, lá vem o tijolo: Bem a quê? Estamos juntos há muito tempo, nada está mal . Esta pequena migalha do meu  gabinete serve apenas para ilustrar uma

Farsas

Os três filmes sobre a luta contra  o comunismo na Polónia são polacos. Ou seja, o assunto, um dos mais importantes da vida europeia do final do século  XX, nunca interessou às grandes companhias  de Hollywood nem aos produtores, intelectuais e artistas franceses ou ingleses.    Há coerência. Também são raríssimas as incursões da  Europa ilustrada e unida contra o populismo, o fascismo e as fakes news, no quotidiano  de metade dos (actuais) europeus  sob a pata das polícias secretas, da interdição de manifestações, da proibição de livros e do encarceramento por delito de opinião. É evidente que eleger o assunto como tema de atenção significaria mostar como funcionou, na prática, o comunismo. Nos detalhes da repressão e da pobreza e não no palavreado do progresso e  da liberdade. Também havia episódios burlescos. Na Polónia as pessoas festejam o aniversário e o dia  do seu santo.  Quando era a vez de Walesa, uma espectacular pantomina desenrolava-se  diante de sua casa. Uma a u