Skip to main content

Morte, tempo e memória ( 6)

De quando datam as nossas mais antigas  memórias de infância?  A média anda  pelos  três anos  e meio de idade ( Assumptions of infantile amnesia: are there differences between early and later memories?, West TA, Bauer PJ Memory, 1999 May; 7(3):257-78) .  Depois há a questão  se estão ou não associadas a contextos emocionais fortesKihlstrom JF, Harackiewicz JM: The earliest recollection: A new survey, Journal of Personality. 1982;50:134–148). Deixemos a ciência especulativa, vamos para a especulação pura.

 Antiguidade e qualidade da mais antiga recordação infantil: para que servem? Sim, por que motivo guardamos coisas enevoadas, as mais das vezes sem relevância nenhuma? O meu dinamarquês preferido tem uma definição de chupeta: um lugar de trânsito para mercadorias avariadas.
Os cientistas, como os citados acima,  assinalam que essas memórias são moldadas pelas experiências de vida subsequentes, normas e valores assimilados  ( ou rejeitados) etc. Essas não me interessam: quero as pristinas, as intocadas.

Uma possibilidade fantástica seria a de guardarmos estas coisas para termos um vector temporal-existencial. Imaginem que só se lembravam de  coisas a partir dos dez anos: ainda acabavam a julgar terem sido raptados no berço por aliens e devovidos nessa idade. A nossa caixa dos pirolitos  deixa-nos  ficar com um ou outro velho recorte amarelado de um  jornal que já não existe? É um aviso simpático: não és as tuas memórias, mas também não és nada sem elas.

A minha mais antiga é alguém a perguntar-me  onde está o pano? Vagamente,  irmãs minhas mais velhas  o meu pai, o quarto das brincadeiras. Népias. Outra, bem definida, tinha quatro anos . Estou no banco da escola e leio,  no quadro,  a giz: ano lectivo 1970/1971.  Lembro-me de ter pensado, e fui-me sempre lembrando desde então:  ena pá... e quando for 1978? Era para mim um futuro longínquo e fascinante.


Comments

Popular posts from this blog

After eight

Depois da excitação sasonal, o assunto da morte de mulheres vai voltar ao remanso. Quando publiquei o livro pude estender o lençol , mas o registo pseudo-literário evitou algumas notas. Agora posso pôr a colcha. Na minha actividade profissional encontro amiúde o início do processo. Mais: encontro até processos que não chegam a ser. Duas correntes: a necessidade assumida que muitas mulheres  têm hoje de uma vida amorosa plena e a estupidificação dos maridos/companheiros/namorados diante dessa necessidade. Se a esmagadora maioria da violência sobre  elas  tem a ver com ciúme  e posse, temos de examinar a evolução das relações amorosas. O João foca-se aqui na saudade dos velhos mecanismos da solidariedade mecânica, como Durkheim a definiu, mas eles morreram bem antes do surto actual. Falando simples: se elas amochassem como amochavam há 40 anos ( não é preciso ir à sociologia do século XIX), muitos destes crimes não ocorriam hoje. A posse, a ilusão de uma garantia sobre o co

After eight ( 2)

Operárias, donas de pequenos aviários, empregadas de supermercados. Quando comecei, no século passado, era raríssimo ter com elas conversas sobre sexo e aparecerem-me  produzidas no gabinete, orgulhosas das unhas de gel ou das tatuagens. Eles, por seu turno, aparecem-me da mesma maneira. A pegunta dos cem milhões ( pelo menos a que eu faço a mim próprio)  é: por que motivo não evoluíram eles também ? Encontro os mesmos pressupostos de posse e mando que encontrava no século passado. Isto significa o total desinvestimento na relação amorosa. Um exemplo:  tenho mulheres casadas /juntas que não se lembram  da última vez em que foram jantar a dois ou numa escapadinha de fim de semana. Quando os confronto, depois das desculpas dos gastos ( muitas vezes espúrias porque gastam eles mais  nos seus hóbis), indagando se não faria bem à relação, lá vem o tijolo: Bem a quê? Estamos juntos há muito tempo, nada está mal . Esta pequena migalha do meu  gabinete serve apenas para ilustrar uma

Farsas

Os três filmes sobre a luta contra  o comunismo na Polónia são polacos. Ou seja, o assunto, um dos mais importantes da vida europeia do final do século  XX, nunca interessou às grandes companhias  de Hollywood nem aos produtores, intelectuais e artistas franceses ou ingleses.    Há coerência. Também são raríssimas as incursões da  Europa ilustrada e unida contra o populismo, o fascismo e as fakes news, no quotidiano  de metade dos (actuais) europeus  sob a pata das polícias secretas, da interdição de manifestações, da proibição de livros e do encarceramento por delito de opinião. É evidente que eleger o assunto como tema de atenção significaria mostar como funcionou, na prática, o comunismo. Nos detalhes da repressão e da pobreza e não no palavreado do progresso e  da liberdade. Também havia episódios burlescos. Na Polónia as pessoas festejam o aniversário e o dia  do seu santo.  Quando era a vez de Walesa, uma espectacular pantomina desenrolava-se  diante de sua casa. Uma a u